O fim dos nomes científicos

Juan Manuel Guerrera
8 min readOct 30, 2023

«Tenho uma prova verdadeiramente maravilhosa para essa afirmação, mas essa margem é muito estreita para contê-la.»
Pierre de Fermat

Quando participei da Feira Sul-Americana de Aves (San Martín de los Andes, 2010), o mais importante encontro de observadores de aves do hemisfério sul, nunca imaginei que minha intervenção do público seria o fim dos nomes científicos. Ou é nisso que acredito e quero que todos acreditem, abusando da sempre limitada informação disponível. Nem imaginei que hoje, sete anos depois, eu decidiria forçar esse fim usando literatura.

Ao longo dos meses que se seguiram, meu discurso naquele dia se transformou no Sistema Universal de Identificação de Espécies (SUIE). Um sistema que, em todo esse tempo, não chegou a nenhum guia de observação de aves, nenhum livro de biologia, ou lugar algum, apesar do apoio recebido das mais altas autoridades ornitológicas da Argentina e do Brasil. Muito menos, é claro, conseguiu alcance internacional, especialmente porque os pais da observação de aves, os ingleses — nas palavras dos ornitólogos latino-americanos — jamais aceitariam, muito menos adotariam, uma mudança de paradigmas vinda do extremo sul.

É claro, devo admitir que fiz muito pouco para que algo assim acontecesse. Para ser mais preciso, não fiz quase nada. A razão é muito simples: o assunto não me interessou o suficiente para seguir em frente e cumprir os passos formais que a ciência exige. A mera ideia de perseguir biólogos ou realizar trabalhos científicos sobre o assunto gera em mim um sentimento incontrolável de desmotivação e tédio, sem dúvida decorrente da minha falta de vocação científica.

É assim que, agora que sou escritor, decidi levar SUIE para o campo das letras. Talvez a literatura seja o motor que o impulsiona, em vez de pesquisas científicas, redes de influência ou persistência feroz. Caminhos que, além de me incomodarem, estão superlotados.

É necessário, então, reconstruir os acontecimentos ocorridos durante aquela Feira. Como de costume, muitos detalhes já escaparam da minhamemória, mas farei um esforço para lembrá-los. Ou, pelo menos, inventálos.

Lembro-me, por exemplo, que fui de ônibus a San Martín de los Andes, saindo de Buenos Aires, numa viagem que durou mais de vinte horas. Infelizmente, não foi a paixão pelos pássaros que me levou tão longe, mas a responsabilidade cinzenta de ser o responsável pela divulgação digital do evento. E, principalmente, a comodidade de ter sido convidado. Devo enfatizar que a uma excelente organização e ao caloroso tratamento pessoal recebido, somaram-se a beleza patagônica e o privilégio de compartilhar o evento com amigos próximos.

Se existe uma comunidade de pessoas doces, amigáveis e gentis, são os observadores de pássaros. Sábia mistura de biólogos, ornitólogos e amadores, em geral com tempo livre, amor pela natureza e possibilidades materiais para viajar. Uma combinação tão terna, tão carente de escuridão, que até gera suspeita. Essas pessoas (e todas as pessoas) têm um lado nebuloso e proibido? Por que não consigo nem vislumbrar isso neles? Estão escondendo isso deliberadamente? Será que eles vão explodir a qualquer momento?

Minhas dúvidas não impediram o início da Feira, cujos eventos previstos na agenda começaram a se materializar. Li o programa e uma das palestras-debate do dia seguinte me chamou a atenção, pois parecia relevante para o escopo da minha formação profissional, a Engenharia de Informática. Resolvi que iria participar.

Cheguei ao evento com alguns minutos de sobra, sem sentimentos precisos. A sala era grande e repleta de pessoas. A comunidade de observadores estava realmente interessada no assunto ou talvez não tivesse alternativas melhores. Quando a conversa-debate começou, o problema foi levantado de forma clara pela mais alta autoridade ornitológica do Brasil.

Apesar das minhas limitações gerais e da minha memória frágil, tentarei descrever o problema da forma mais simples possível, esperando que os biólogos taxonomistas, se necessário, me perdoem.

Quando uma espécie de ave muda de gênero, há um conflito entre o antigo nome da espécie e o novo gênero. Como referência conceitual, uma família agrupa gêneros e um gênero agrupa espécies.

O nome oficial de uma espécie é dado por um nome científico. Por exemplo, o nome científico do pombo é Columba livia. Em linhas gerais, amesma coisa acontece com todos os seres vivos, desde uma samambaia (Pteridium aquilinum) até o ser humano (Homo sapiens).

Um nome científico é composto de duas partes. A segunda, chamada de epíteto específico, é relativamente arbitrária e define a especificidade da espécie. A primeira, denominada gênero, pode ser compartilhada por uma ou várias espécies que possuem certas características em comum; por exemplo, o gênero do pombo (Columba livia) é Columba e é compartilhado por cerca de trinta e quatro espécies. É nesta primeira parte que se concentram os problemas.

Quando uma espécie é alterada de gênero, talvez devido a uma nova descoberta, há um conflito entre o nome antigo (ancorado no gênero) e seu novo gênero. Suponhamos, para sermos brutais, que descobrimos que os pombos são, afinal, ratos alados. Se simplesmente transferíssemos o pombo (Columba livia) para o novo gênero (Rattus), teríamos um absurdo semântico, pois a primeira parte de seu nome, Columba, não teria nada a ver com o novo gênero, Rattus. O que os ornitólogos fariam, então, seria mudar o nome científico da espécie para algo como Rattus livia.

Uma vez oficializada a mudança de nome, todos os livros, relatórios e documentos que falavam sobre essa espécie ficariam desatualizados, dando origem a um grande número de micro problemas, confusões e conflitos semânticos. A questão, então, era como resolver esta questão.

Depois de anos estudando Ciência da Informação (ou seja, a Informática), uma possível solução para o problema ficou evidente para mim desde o primeiro momento. Levado pelo erro habitual de acreditar que os outros podem ver as coisas como a gente vê, presumi que o público também rapidamente o vislumbraria. O debate tornou-se intenso, longo e, aos meus olhos, colorido. As pessoas participaram com entusiasmo, propondo as ideias mais bizarras. Quando finalmente percebi que o debate ia se prolongar, fui em busca de uma bebida e uns biscoitos deliciosos.

Só no final, quando o debate estava muito travado e a solução que eu tinha em mente nem sequer ameaçava aparecer, levantei a mão para dar minha contribuição.

— Olá a todos, meu nome é Javier. Eu estava ouvindo as intervenções com muito cuidado. Algumas me pareceram altamente… originais, embora erradas. A verdade é que estou aqui por acaso. Não sei nada sobre pássaros, observação ou biologia. Talvez seja isso que me permita visualizar o problema e uma possível solução com clareza. É que, infelizmente, souEngenheiro de Informática. O problema proposto é um caso típico de «problema de identidade»; deixe-me dizer-lhe o que isso significa. Todo código de identidade, assim como um documento nacional de identidade (DNI), deve necessariamente obedecer a dois princípios: não se repetir e não mudar. Se tivéssemos códigos repetidos ou se eles tivessem a possibilidade de mudar, seria muito difícil de cumprir o objetivo de identificação. O nome científico, por mais antigo e querido que seja, não condiz com eles, mais especificamente com o de não mudar. Porque não? Porque quando uma espécie muda de gênero, isso também leva a uma mudança de nome, o que viola o princípio de não mudar. Quero ser bem claro neste ponto: se durante o primeiro ano da Faculdade de Engenharia, diante do problema de definir um código de identidade para as espécies, eu propusesse algo como o nome científico, seria automaticamente avaliado com um zero e, além disso, seria justamente caluniado por escolher o idioma latim morto para o meu código. A maneira mais universal e prática de evitar esse problema é não usar latim morto para o código de identificação, nem inglês, nem grandes tabelas, nem sistemas de informática, como alguns sugeriram, mas números. Os códigos de identificação corretos e bem-sucedidos são baseados em números, como os documentos de identidade nacionais. Eventualmente combinados com letras sem sentido, como placas de carros. Que os números e letras do código de identidade não tenham significado é importante para evitar conflitos no caso de possíveis mudanças de categoria, como ocorre com o gênero no caso das espécies. Em suma, a solução seria substituir os nomes científicos por códigos numéricos ou alfanuméricos sem sentido. O nome científico pode ter significado um avanço há duzentos e cinquenta anos, mas às vezes o valor de uma tradição não é suficiente para sustentar um erro que gera problemas.

Já no final da minha intervenção, os murmúrios ganharam volume e tornaram-se perceptíveis. Eu tive que levantar minha voz para terminar, e quando o fiz, os sentimentos reprimidos da platéia explodiram. Metade da plateia irrompeu em aplausos quando se viraram para me olhar de um jeito sorridente e aprovador. A outra metade me vaiou e me mostrou seus rostos desconexos e avermelhados, enquanto gritava coisas que eu não entendia ou não me lembro, levantando as palmas das mãos ou os dedos indicadores. «Traidor!», alguém gritou lá atrás, disso sim me lembro.

Quando a multidão se acalmou, um homem de quarenta e poucos anos tomou a palavra . Tinha barba, cabelos compridos e um inegável coração romântico. Estava em frenesi e apontava para mim enquanto falava.

— Nós que amamos os pássaros não vamos permitir que alguém como você transforme a natureza em números frios. Aves não são um produto!

Como tantas vezes na história, a metade que não tinha entendido rugiu de satisfação com as belas palavras do Barba e as acompanhou ruidosamente com aplausos e exclamações de apoio. A outra metade apenas riu e comentou a situação. Tomei a palavra mais uma vez.

— Não se preocupem, não estou aqui para convencê-los de nada. Simplesmente estava sentado aqui ouvindo e como o problema não se resolvia, parecia uma boa ideia compartilhar minha proposta de solução. Tampouco pretendo transformar pássaros em produtos, uma ambição que não poderia alcançar mesmo que quisesse. Assim como não lhes chamo pelo DNI, não proponho que chamemos as aves pelo seu código de identificação, nem que quando saímos para observar as aves digamos «Olha Barba querido, tem um 18 voando»; embora alguns possam fazer, como fazem agora com nomes científicos. A solução não vai mudar a experiência atual de observação de pássaros, nem o amor pelos pássaros, mas vai fornecer um código de identificação sem os problemas que vocês mesmos vêm descrevendo. Seu uso pode ser limitado a aspectos formais ou científicos, sem a necessidade de incomodar amadores que, aliás, já estão bastante incomodados por serem expostos ao latim morto. E o mais importante, não sou biólogo, nem observador de pássaros, nem quero ser — houve outra vaia — … o que quero dizer é que não tenho nenhum interesse particular nesta solução que, gostem ou não, resolve o problema apresentado. Vocês podem fazer com ela o que quiserem.

Um novo tumulto tomou conta da sala e, de fato, encerrou um evento que já havia se estendido muito além do esperado. As pessoas levantavam e vinham, tanto para me parabenizar quanto para me repudiar. Fiquei surpreso com as repercussões da minha intervenção.

Entre as pessoas que compareceram ao final do evento estava o organizador da Feira, que me convidou para apresentar minha proposta de solução na Feira do ano seguinte. Não encontrei nenhuma razão para recusar o convite, então mais uma vez me deixei levar pelos acontecimentos e disse sim.

Aliás, no ano seguinte expus novamente na Feira, desta vez da frente da sala, perante um público muito menos concorrido e interessado. O mais notável foi a participação de uma das maiores autoridades ornitológicas da Colômbia, cuja maior contribuição foi zombar de mim e de minha proposta ao longo da apresentação, sem sequer tentar entender o que eu estava dizendo. Como estava acostumado a fazer, comentei que não tinha nenhum interesse especial em impor minha proposta e que, se ele quisesse falar de idéias ridículas, poderíamos aprofundar o uso do latim morto como código de identificação.

Foi assim que a segunda das minhas Feiras decorreu sem intercorrências para o SUIE, cuja vitalidade se diluiu até hoje, quando a passagem do tempo o encontra a um passo do esquecimento. Um destino talvez impossível, já que o inevitável carece de capacidade de extinção.

O fim dos nomes científicos começou naquele dia, em San Martín de los Andes, mas ainda está longe de terminar. Só o tempo dirá se a Literatura pode alcançar o que a Ciência da Informação, com suas razões, não conseguiu.

Traduzido por Luca Dutra
dutraluca11[at]gmail.com
Versão original (em espanhol)

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Juan Manuel Guerrera

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