O eterno dilema (Vida alternativa de Marx I)

Juan Manuel Guerrera
5 min readMay 22, 2023

«Não posso satisfazer plenamente Os desejos que vibram em meu espírito nem gozar do descanso e da calma porque um furacão se agita dentro de mim.

Queria abranger tudo, possuir as mais belas dádivas dos deuses, penetrar nos segredos da ciência, desfrutar dos arcanos das artes.

Ainda não há limites para minha ousadia que me leva a um cansaço sem fim E que bane a apatia e o silêncio Para o fundo do abismo do nada.

Não quero viver medrosamente suportando o temor aos jugos mesquinhos: Revive todos os dias em minhas entranhas o fogo do desejo, da ânsia e da ação.»

Karl Marx, poema

Karl Heinrich Marx nasceu em 5 de maio de 1818 na cidade alemã de Tréveris.

Foi educado em casa até os doze anos de idade. Em 1830, se tornou um aluno do Instituto de Tréveris.

Cinco anos depois, ingressa na Universidade de Bonn. Embora deseje estudar filosofia e literatura, acaba se inclinando para o direito, em grande parte por pressão do pai, que deseja para o filho uma profissão com boas perspectivas de emprego. Apenas um ano depois, devido às notas baixas, seu pai o obriga a continuar seus estudos na Universidade de Berlim, uma instituição acadêmica muito mais séria e formal. Lá, seus estudos de direito continuam a declinar, assim como seu interesse e confiança na literatura queproduz. Não é para menos. Em vez disso, crescem suas incursões na filosofia e na história.

É dessa época é o poema que encabeça este escrito. Nele se vê com clareza a batalha que cresce dentro de Marx e que não o deixará até o fim de seus dias. É sobre o conflito entre sua intensa vida intelectual e sua profunda necessidade de ação. O eterno dilema entre pensar e fazer, entre desejar e realizar, entre compreender e transformar.

Essa tensão também se manifesta em sua pequena obra Tese sobre Feuerbach, onde expressa sua famosa frase: «Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; agora é preciso transformálo». Neste compêndio de breves princípios filosóficos, Marx critica o materialismo antigo como contemplativo e mecanicista; ao idealismo como abstrato, especulativo e ambíguo; e à filosofia em geral como teórica, porque se limita à interpretação passiva do homem e de sua história.

No entanto, ao mesmo tempo, Marx sente a necessidade profunda de compreender a realidade como condição indispensável para agir sobre ela. Tem medo de começar a trabalhar na direção errada, arrastado por diagnósticos imprecisos. Não quer cair no idealismo infundado dos socialistas utópicos, baseado mais em belos desejos do que em fatos concretos demonstráveis. É por isso que busca sustentar suas teorias na fundamentação científica, algo reconhecível em seus trabalhos, para além das críticas posteriores que Popper e outros filósofos farão sobre seus trabalhos.

Marx enfrenta uma encruzilhada difícil de resolver, à medida que o estudo científico da realidade o afunda cada vez mais na leitura, na teoria e na análise, e o afasta da ação que ele tanto deseja realizar. Por um momento, acredita que pode converter-se naquilo que critica. Apesar de confiar em suas convicções (tão difíceis de provar), ele mantém a capacidade de questionar a si mesmo. «São estas leituras, estas reflexões, estes ensaios, atos verdadeiramente transformadores? Esses estudos são uma parte indispensável da ação? Tenho disponível outra maneira de fazer isso? Estou me tornando um contemplativo, um teórico, um abstrato? Posso interpretar este trabalho intelectual como uma forma de ação indireta ou, pelo menos, como um investimento de uma ação futura?». Quanto mais estuda e escreve, mais pesam essas questões.

Em 1841, Marx recebe seu doutorado pela Universidade de Jena. Sua tese defende o ateísmo proposto por Epicuro. Por isso não a apresenta em Berlim, onde os professores são mais conservadores. A conquista, longe de satisfazê-lo, o deprime, pois tem gosto de superficial. Se sente vazio, apesar de ser a maior conquista de sua carreira acadêmica.

A partir dessa insatisfação, Marx começou a perder a confiança em sua tarefa de intelectual. Ele não a abandona, mas para de colocar toda a sua energia nela. Em parte por isso, um ano depois, Marx recusa uma oferta como colunista do Rheinische Zeitung, um jornal com sede na cidade de Colônia. Embora possa não saber, essa decisão evitará, no futuro, censuras, perseguições e exílios.

Tendo descartado a mudança, Marx começa a frequentar diferentes grupos de trabalho comunitário em Berlim. Visita refeitórios, grupos de apoio a quem vive nas ruas e comícios de trabalhadores que buscam se organizar para resistir à exploração a que se sentem submetidos pela nascente revolução industrial. Dedicou grande parte de seu tempo a essas atividades durante a década dos anos quarenta.

Essas contribuições diretas trazem algum alívio para sua alma dividida. Pela primeira vez, sente que está fazendo algo concreto. Vê com seus próprios olhos como essas almas esquecidas vivem um pouco melhor graças à sua ajuda. Vê mãos frias agarrando-se a uma caneca quente como um náufrago em um pedaço de madeira. Vê olhos que vibram de novo, não tanto porque agora eles têm um casaco, mas porque a ajuda devolve a confiança na humanidade. Ele vê nos outros assistentes sociais a solidariedade de quem se doa generosamente, sem necessidade (direta, evidente) de o fazer.

No entanto, o agora mitigado martírio de Marx permanece latente em seu âmago. Não é fácil para ele encontrar descanso. Acredita que o mundo continua igualmente mal, apesar de sua ajuda efetiva e material a algumas dezenas de pessoas. Desconfia que sua contribuição seja testemunhal, quase egoísta, uma forma de ignorar o problema geral e sistêmico. Uma forma de se justificar, de acreditar que fez a sua parte e que isso o isenta de responsabilidade pelo resto. Sabe, no fundo, que tem muito mais a dar.

A queda de braço entre o intelectual e o assistente social se intensifica, embora nenhum dos caminhos, nem separados nem juntos, lhe ofereçam trégua. O intelectual tem o potencial de causar um impacto maior,talvez no futuro ou com a ajuda de outras pessoas, ao custo de talvez não conseguir nada. O assistente social pode ajudar imediatamente, mas de uma forma muito limitada, condenada demais a deixar os problemas do mundo intactos. Até agora, não está convencido de nada do que está fazendo, mas também não vê outras alternativas.

Marx não consegue decidir e avança simultaneamente com os dois lados de sua personalidade até o ponto da exaustão, estresse e doença.

O intelectual precisa cada vez mais de tempo e energia para obter um resultado cujas consequências são incertas. Até agora, sua produção tem sido ignorada por quase todos. Uma das poucas exceções é Friedrich Engels, que em 1849 sugeriu que ele se mudasse para Londres para continuar seus estudos econômicos. Após alguma hesitação, Marx recusa a proposta.

O assistente social, ao contrário, é arrastado pelas urgências dos seus assistidos, que são cada vez mais, têm necessidades crescentes e encontram nele a esperança de um futuro melhor.

A simples dinâmica dos eventos empurra Marx para o assistencialismo social. Escolhe a viabilidade inapelável de hoje ao invés do idealismo incerto de amanhã. E faz isso até o dia de sua morte. A contribuição é modesta para a estatura de suas aspirações, mas enorme para seus assistidos de carne e osso, que cultivam um verdadeiro amor grato por aquele homem barbudo, nobre e orgulhoso. O mesmo que cansa as portas de famílias abastadas e funcionários do Estado para ajudar aquele exército de despossuídos que lotam as ruas de Berlim.

Enquanto isso, o intelectual vai esmaecendo até desaparecer, como também fazem, lenta e silenciosamente, as revoluções do futuro.

Marx morreu inteiramente em 14 de março de 1883.

Traduzido por Luca Dutra
dutraluca11[at]gmail.com
Versão original (em espanhol)

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Juan Manuel Guerrera

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