Letra para o tango «A Evaristo Carriego»

Juan Manuel Guerrera
10 min readOct 10, 2023

Música recomendada para acompanhar a letra: “Orquesta de Osvaldo Pugliese, año de grabación 1966, https://www.youtube.com/watch?v=3N7MhkhlWBs

(música, 0:00)

(recitado)
Como tierra del Paraná
Lo arrastra al sur el destino
Hasta encontrar su camino
En el barrio de Palermo
Donde un porvenir enfermo
Será su más cruel vecino

Se enamora pero escribe
Lo traicionan pero escribe
Lo abandonan pero escribe
Se derrumba pero escribe

Es muy joven pero escribe

Y regresa al bar
Para poder conversar
Y no volver a pensar
En el amor

(música, 0:50)

Y recitar a viva voz
Su gran dolor
Disimulado en un poema

De un marginal
De un arrabal
De un par de guapos que se prueban

Y vuelve
Y siente
Y quiere

No
No ansiar
No atar
No urgir
No huir
No odiar
No

Lee a Almafuerte pero escribe
Lee a Cervantes pero escribe
Lee a Lugones pero escribe
Lee a Hernandez pero escribe

Se cuestiona pero escribe

“Y va a caminar
Para volver a observar
Aquello que muy pronto va
A dejar”

(música, 1:50)

El casamiento
Deslumbramiento
La costurera del mal paso

De sobremesa
Una sorpresa
El silencioso en la trastienda

(recitado)
Invitación
Revelación
Frente a frente
Por el ausente
¿No te veremos más?
Ninguna más
Has vuelto, Vulgar sinfonía
La dulce voz que oímos todos los días

(música, 2:35)

Mira el cielo y se descarga:
“¡Buenos Aires,
No me he ido y ya extraño tus calles!

¿Y ahora quien te va a mirar?
¿Y ahora quien te va a escuchar?
¿Y ahora quien te va a abrazar?”

Se transpira pero escribe
Ya no come pero escribe
Tose sangre pero escribe
Queda poco pero escribe

(recitado)
Y con la frente quemando
Se le presenta La Muerte:
“Rapsoda, vamos andando,
Ya es hora, no se despierte”

(recitado)
Entonces dice el poeta…
“No se apresure Don Fuego
He preparado sin ego…
Unos versos para leerle
Así mañana pueden creerle
Que ha conocido a Carriego”

Evaristo Carriego

Não conhecia Evaristo Carriego. A primeira vez que soube dele foi quando descobri o nome daquele tango incrivelmente dramático de quetanto gostava: A Evaristo Carriego, composto pelo bandoneonista Eduardo Rovira. Embora não tivesse informações enciclopédicas sobre Carriego, sentia que já o conhecia um pouco, depois de ter escutado dezenas de vezes a música que por algum motivo lhe havia sido dedicada.

Fiquei imaginando quem seria Carriego, merecedor de um tango tão especial. Pesquisei e li sua biografia. Poeta argentino, nascido no Paraná, morou em Palermo e morreu aos 29 anos, de tuberculose. O que mais me chamou a atenção foram estas palavras de Borges:

«Lembro-me que o exemplar [de Misas Herejes], dedicado ao meu pai, era um dos vários livros argentinos que tínhamos levado para Genebra e que lá li e reli.»

Borges havia lido e relido o livro de Carriego. Isso merecia alguma consideração. Seguir esta conexão levava ainda mais longe. Borges também foi autor do livro Evaristo Carriego. Naquele momento, soube que um dia eu conseguiria esse livro.

Evaristo Carriego, o livro

As semanas, talvez meses, passaram. O ano de 2020 estava começando e eu havia terminado de escrever, pela primeira vez, uma letra de tango. Era a letra de El ingeniero, até então um tango sem letra conhecida. Para facilitar o trabalho para futuros músicos, comecei a procurar sua partitura. Não havia nenhuma informação, exceto uma partitura original à venda em Mar del Plata. Graças a uma enorme coincidência, eu tinha que viajar para Mar del Plata alguns dias depois. Muitos aproveitarão este evento para confirmar que o acaso não existe. Reservei a partitura e, quase de passagem, pedi livros sobre Evaristo Carriego. «Sim, claro, tenho o do Borges», disse-me a voz confiante do vendedor. Sem saber plenamente, o fim da escrita de uma letra de tango se vinculava em silêncio com o início de outra. Talvez a mesma coisa esteja acontecendo neste exato momento com a letra que segue.

Li o livro. Não sou crítico de literatura e muito menos para fazer uma crítica de Borges. Pelo menos não sem dizer essas palavras primeiro. O livro me pareceu a soma desintegrada de dois livros. A primeira, um estudo sobre Carriego e sua obra, feito por Borges. A segunda, um conjunto de escritos de Borges sobre temas que têm alguma relação com Carriego: as letras escritas sobre os carros de Buenos Aires, o tango, os punhais, oscavaleiros. O critério para juntar estes dois livros num só, intitulado Evaristo Carriego, pareceu-me inteiramente editorial.

Na primeira parte, se destaca o capítulo Una vida de Evaristo Carriego, onde Borges revê a vida de Carriego e a sua obra de forma bastante literária. Nos outros capítulos fala sobre Palermo, as origens do poeta de Entre Ríos e a interpretação de alguns de seus poemas. O escritor uruguaio Emir Rodríguez Monegal diz no prólogo de outra edição do mesmo livro, referindo-se a esta primeira parte:

«Tudo o que Borges toca se transforma em ficção. […] Ao longo destas páginas, Carriego (sua poesia frágil e sentimental, seu limitado mundo suburbano, sua inserção hesitante na realidade) torna-se gradualmente mais um dos personagens de Borges. […] Carriego não existe mais, ou talvez nem importe se já existiu. Mas há cada vez mais Borges, esse jovem escritor para quem Carriego era uma metáfora de muitas coisas; metáfora de uma Buenos Aires perdida; de uma atitude casual e até lateral em relação à poesia profunda; de uma admiração pela coragem e a faca que Borges (como Carriego) nunca quis esconder.»

A segunda parte do livro, em geral, tem uma relação muito indireta com Carriego. Ainda assim, os capítulos Historia del tango e Historia de jinetes são escritos muito valiosos que agradeço ter encontrado no mesmo livro. O primeiro faz observações originais sobre a história do tango e ainda mantém certa relação com Carriego, considerado um dos precursores das letras tangueiras. A segunda explora o estereótipo do cavaleiro e em particular do gaúcho, um dos ancestrais imediatos do compadre suburbano.

Versos de Carriego (seleção), o outro livro

Há algumas semanas, reconsiderei a possibilidade de escrever esta letra. Por vários dias não consegui me decidir, pois essa possibilidade estava em saudável competição com outras ideias sobre as quais também queria escrever. Estava nesse debate interno quando encontrei o livro Versos de Carriego (seleção) em uma livraria de usados na rua Rivadavia. Até onde lembrava, nunca havia encontrado um livro de Carriego em uma livraria. Ou talvez sim, mas, como também fazemos com as pessoas, nunca tinha lhe prestado atenção. Este evento talvez inexplicável inclinou a balança de minha próxima escrita para estas linhas. Era um sinal difícil de evitar, mesmo para um cético como eu. Comprei o livro por menos de um terço de dólar (que sentido teria expressar seu valor em pesos?). Por um preçosemelhante, comprei também o livro Cuentos mortales de Leopoldo Lugones, algo como o anti-autor de Carriego.

O prólogo do livro Versos de Carriego (seleção) também é de Borges. É uma espécie de resumo de toda a primeira parte do livro Evaristo Carriego. Diz, por exemplo:

«A descoberta, digamos assim, do nosso subúrbio define o mérito essencial de Carriego. […] Aos personagens de sua obra — o guapo, a costureirinha que deu aquele passo errado, o cego, o tocador de realejo — força a acrescentar outro, o menino tuberculoso e de luto que caminhava lentamente entre as casas baixas, ensaiando algum verso ou parando para ver o que logo deixaria.»

O próprio Borges define Carriego como mais um personagem na obra de Carriego. Talvez seja uma forma borgesiana de concordar com Rodríguez Monegal: Carriego é, na verdade, mais um personagem da obra de Borges.

Ter a orientação de Borges facilitou muito a internação nos poemas de Carriego. Borges diz nesse livro:

«A mais deliberada página de humor deixada por Carriego é El casamiento. É a mais portenha também. En el barrio é quase uma entrerriana de boa aparência; Has vuelto é um único e frágil minuto, uma flor do tempo, de um único pôr do sol. El casamiento, por outro lado, é tão essencial de Buenos Aires quanto os cielitos de Hilario Ascasubi ou Fausto Criollo ou o humor de Macedonio Fernández ou o início festeiro dos tangos de Greco, de Arólas e de Saborido.»

Se não me considero apto a fazer crítica literária (sou muito mais apto a recebê-la), isso é ainda mais verdadeiro quando falamos de poesia. É um mundo que, em geral, é estranho pra mim.. Se a poesia de Carriego me interessou, foi porque já tinha lido Borges antes e porque tinha a necessidade urgente de fazê-lo para escrever esta letra. A verdade é que nenhum dos poemas foi especialmente memorável para mim.

A composição

Verifiquei duas vezes que este tango não tinha letra. A primeira, quando pensei seriamente em escrever uma pela primeira vez. A segunda, meses depois, quando me sentei pela primeira vez para fazê-lo.

À medida que avançava na composição, confirmei o que já sabia no fundo, aquilo que havia feito eu demorar para começar a escrever. A músicatinha tal complexidade (ao menos para mim) que tornava pelo menos desafiante a tarefa de compor uma letra. Não tinha sentido isso quando escrevi a letra de El ingeniero.

Eu não costumo duvidar da minha capacidade de obter resultados, por mais pobres que sejam. Sim duvidava, no entanto, da minha capacidade de obter uma letra que merecesse meu orgulho. Diante dessa hesitação, como tantas outras vezes, a literatura veio em meu socorro, neste caso nas recentíssimas páginas de Historia del tango:

«Num diálogo de Oscar Wilde lemos que a música nos revela um passado pessoal que até então ignorávamos e nos leva a lamentar desventuras que não nos aconteceram e faltas que não cometemos. […] Talvez a missão do tango seja esta: dar aos argentinos a certeza de terem sido valentes, de já terem cumprido as exigências de valor e honra.»

Como um dos cavaleiros de Historia de jinetes, como aquele gaúcho de El desafío que pisou na mão gravemente ferida para arrancá-la e continuar lutando, baixei a cabeça e investi contra a página em branco. Muitas vezes senti bater em uma parede. A resposta era a única possível para quem não tem o dom da genialidade: redobrar os esforços, multiplicar as horas de trabalho. Essa ideia me levou a uma possível verdade: os gênios não necessariamente realizam obras de maior qualidade, mas as realizam mais rapidamente; e com dedicação, claro, também conseguem um número maior delas. Mas atenção: a genialidade, como o infinito, não admite quantificações tão facilmente; uma obra genial não é necessariamente menos do que uma coleção de várias obras geniais.

Para escrever as letras, precisava, é claro, contar com uma música. Desde o primeiro momento, tive certeza de que seria a grande versão de Bandonegro (https://www.youtube.com/watch?v=4nrwRIulWSo), uma orquestra de tango polonesa. No entanto, pouco antes de começar, fui invadido por uma espécie de aviso, também da Historia del tango:

«O tango pode ser discutido, e o discutimos, mas contém, como tudo verdadeiro, um segredo. Os dicionários musicais registram, aprovados por todos, sua definição breve e suficiente; esta definição é elementar e não promete dificuldades, mas o compositor francês ou espanhol que, confiando nela, confecciona corretamente um ‘tango’, descobre, não sem espanto, que confeccionou algo que nossos ouvidos não reconhecem, que nossa memória não hospeda e que nosso corpo rejeita. Diria-se que sem entardeceres e noites em Buenos Aires não se pode fazer um tango.»

Essa reflexão levou-me a procurar, a considerá-la como alternativa, a versão da orquestra de Pugliese (https://www.youtube.com/watch?v=3N7MhkhlWBs). Não precisei terminar de ouvir para entender que minha composição seria baseada nessa última versão e não na polonesa. Sabia que a versão de Pugliese, por razões difíceis de racionalizar, me ajudaria muito a encontrar as palavras certas. Na verdade, era mais do que isso: soube que era minha única chance de conseguir. O leitor fica com o desafio de ouvir as duas versões e decidir o quão certa foi minha conclusão.

Depois de muitas horas de frustração e, claro, graças a isso, pude desfrutar da satisfação inversa de chegar a um resultado.

Há perguntas que eu me fiz durante todo o processo de escrita. O que há de mim nessa música com a qual me sinto tão conectado? O que há de Carriego naquela música que foi dedicada a ele? O que há de Carriego, em última instância, em mim?

«Chego à questão da doença dele, que acho importantíssima. […] Ele sabia que estava dedicado à morte e sem outra imortalidade possível senão a de suas palavras escritas; por isso, a impaciência da glória. […] Compreendeu que a consagração lentíssima alcança em vida a poucos anciãos, e sabendo que não produziria uma pilha de livros, abriu o espírito circundante à beleza e gravidade de seus versos. […] A premonição da morte incessante urgia. Carriego cobiçava o generoso tempo futuro dos outros, o afeto dos ausentes. Por esta conversa abstracta com as almas, passou a desconsiderar o amor e a amizade sem suspeitas, reduzindo-se a ser a sua própria publicidade e seu apóstolo.»

Não estou doente, ou estou sem saber, ou sei sem saber, ou talvez todos estejamos a partir do momento em que compreendemos que a morte é nossa única certeza. Não procuro a glória, ou procuro-a sem o saber, ou procuro-a sabendo sem querer assumi-la, ou talvez essa urgência que sinto se deva à certeza feroz de que a vida é muito frágil e curta, de que tudo pode acabar a qualquer momento, de que o tempo é curto e está acabando.

«Carriego acreditava que tinha uma obrigação com seu bairro pobre: uma obrigação que o estilo vilanesco da data traduzia em ressentimento, mas que ele sentiria como uma força. Ser pobre implica uma posse mais imediata da realidade, atropelando o primeiro gosto áspero das coisas: conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo fosse filtrado para eles. Evaristo Carriego julgou-se tão endividado com o seu meio, que em duas ocasiões diferentes da sua obra se escusou de escrever versos a umamulher, como se a consideração da amarga pobreza do bairro fosse o único uso lícito do seu destino.»

Não acho que tenho uma obrigação com meu bairro pobre, embora eu tenha uma com minha terra que se empobrece. Talvez sejam duas formas de acreditar na mesma coisa, apenas separadas por cem anos de história. Essa obrigação é também para mim, sem dúvida, uma força. O empobrecimento pode continuar, mas continuarei escrevendo. Sentirei em mim o desespero dos verdadeiramente despossuídos, mas continuarei escrevendo. A adversidade recorrente virá me marcar com sua faca, mas continuarei escrevendo. Verei a Morte aparecer diante de mim, mas continuarei escrevendo.

Traduzido por Luca Dutra
dutraluca11[at]gmail.com
Versão original (em espanhol)

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Juan Manuel Guerrera

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