Adeus, querido edifício

Juan Manuel Guerrera
9 min readOct 3, 2023

“Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância.”
Julio Cortázar, em seu conto Casa Tomada.

Gosto do edifício porque, além de espaçoso e antigo, guarda as memórias da minha avó materna, dos meus pais e da minha infância.

É uma verdadeira lástima ter que deixá-lo.

O preço do aluguel subiu de novo e não posso mais pagar. Na verdade, falar de aluguel é uma inexatidão confortável, pois nos acostumamos a dizer apenas «aluguel» para nos referirmos a «aluguel mais despesas». A conta que chega a cada mês tem um único item: «Aluguel». Ou seja, não há como saber como o valor total é composto. Minha avó diz que antes, na época dela, o aluguel e as despesas eram pagos separadamente. E que, além disso, as despesas vinham desagregadas com o detalhamento de cada gasto. Inverificável.

Não sem esforço, consegui fazer com que os administradores compartilhassem comigo a composição detalhada do «Aluguel». Diria que eles o fizeram com má vontade, obrigados pela minha insistência. Felizmente, sou uma pessoa diplomática. Caso contrário, a pouca predisposição que mostraram teria terminado mal. Não entendo por que tanta relutância, por que tanto mistério.

Com essa informação em mãos, pude confirmar o que já supunha sobre os gastos do edifício. Até o mês passado, as despesas (ou seja, os gastos comuns do prédio) eram do mesmo valor do aluguel. Agora, com o último aumento, o ultrapassaram. E por como se vislumbra o panorama dos próximos meses, posso supor que as despesas continuarão ampliando sua vantagem.

O último aumento nas despesas foi uma consequência direta da saída do vizinho do andar de cima. Um vizinho histórico, diga-se de passagem. O (outro) aumento anterior era muito oneroso para ele e não podia mais pagar. Era inútil tentar convencê-lo a buscar alternativas. Dissemos que ele dariaum jeito de pagar, que talvez as despesas caíssem nos próximos meses (embora isso nunca tivesse acontecido) ou que ele deveria solicitar alguma ajuda especial do consórcio. Os zeladores foram especialmente insistentes, mas também não conseguiram fazê-lo mudar de ideia. “Não posso, não quero, não devo”, repetiu simplesmente o vizinho.

Em decorrência dessa saída, os demais inquilinos tiveram que arcar com o valor das despesas do vizinho em retirada. Ou seja, tivemos que pagar despesas maiores. O assunto foi discutido em uma reunião de condomínio. Alguns vizinhos, a começar pelos administradores, acabaram culpando o vizinho que estava saindo. Eu não pude comparecer à reunião, mas tal conclusão parecia um pouco injusta.

A partir desse evento, examinei meu próprio caso. Presumi que com minha partida as despesas aumentariam novamente «por minha causa». Como no caso do vizinho, a minha não foi uma decisão deliberada, mas uma consequência inevitável. Uma simples e pura falta de alternativas. De forma alguma eu queria passar pelas mesmas pressões públicas para deixar o edifício. Por isso, decidi que informaria o condomínio sobre minha saída no último dia, surpreendentemente, para não dar margem a qualquer tipo de manobra ou reclamação. Sim, mesmo que isso significasse correr o risco de perder o caução.

Como qualquer um pode imaginar, a solução natural e desejável para o condomínio teria sido alugar novamente os apartamentos liberados. É o que sempre tinha acontecido. No entanto, sob as novas condições, isso era altamente improvável. Se o edifício era incapaz de manter seus habitantes históricos, muito menos estava em condições de atrair novos inquilinos. Me constava que quando um interessado conhecia o valor do aluguel, saia assustado.

O edifício é médio, quase pequeno. Tem trinta e dois apartamentos. Há dois corpos de dezesseis apartamentos cada. E cada corpo tem quatro andares de quatro apartamentos. No térreo tem um enorme corredor com teto alto, um grande jardim com uma fonte no meio e um par de lojas na frente. E abaixo, no subsolo, um grande salão para eventos.

Minha avó sempre reclama que o prédio está «muito decadente». De acordo com sua intacta memória de longo prazo, durante os anos posteriores à sua construção o edifício «brilhava em todo o seu esplendor». Cada ano pintavam setores inteiros do edifício, qualquer item quebrado era substituído por um original em questão de dias e os jardins bem cuidadosestavam transbordando de flores. «Outros tempos», suspira enquanto termina de listar suas queixas.

Desconfio que minha avó deve estar certa. Atualmente, o edifício parece muito degradado. Não é pintado há anos. O mármore nas escadas está deformado. Os vazamentos se multiplicam e um cheiro suave de gás invade os cantos. Muitos cabos atravessam os telhados do edifício, uma paisagem infeliz vista do pátio central do térreo. Itens quebrados, como um poste ou maçaneta, podem levar meses para serem substituídos, e isso quase sempre acontece com peças piores que as originais. Bronze é substituído por aço, aço por ferro, ferro por plástico. A calçada sempre tem ladrilhos quebrados, com pequenos tufos de grama crescendo entre eles. Os zeladores sempre juram ter relatado problemas à administração. E a administração sempre jura que não há dinheiro.

Com o passar dos anos, a resignação se espalhou por todo o edifício. O fez sem barulho, mas sem descanso. Muitos vizinhos foram embora, muitos se refugiaram no trabalho (para pagar os aluguéis crescentes) e muitos, principalmente os novos, não se importam. Para estes últimos, o sentimento de declínio é o estado natural das coisas.

Cerca de 100 adultos moram no prédio. Destes, 16 trabalham na administração. 8 o fazem como zeladores e 8 como administrativos. Minha avó conta que antes, na época dela, havia apenas 2 pessoas: 1 como zelador e 1 como administrativo. E que sua mãe lhe disse, em tom de reclamação, que antes havia apenas 1 pessoa encarregada de tudo. Indemonstrável.

Os 8 zeladores têm tarefas muito definidas. Um é responsável pelos serviços públicos (eletricidade, água, gás, telefone), outro pelos pisos e paredes, outro pela limpeza, outro pela iluminação, outro pelo jardim, outro pela segurança, outro pelas cobranças e outro pelas «questões sociais». Quando um vizinho tem um problema no edifício, é fundamental entrar em contato com o zelador específico para atendê-lo. Se esse zelador não estiver disponível por qualquer motivo, não há escolha a não ser esperar. «Não é má vontade, senhor, mas fora o fato de que não depende de nós, não queremos invadir o espaço do nosso companheiro», respondem os demais zeladores se alguém procurar ajuda excepcional. Às vezes, encontrar o zelador certo pode levar vários dias.

Os 8 administrativos também têm muito trabalho. Não só devem dar apoio administrativo aos zeladores, mas também devem conduzir a economia do edifício. Além de administrar os aluguéis dos vizinhos, geremalguns empreendimentos que o condomínio tem, que se saiba, uma casa de alimentação (num dos locais da frente do edifício), um ponto de táxi particular (no outro local) e um salão de eventos (no subsolo). Todos dão perdas. Cada uma das empresas tem pessoal externo. Não é incomum o condomínio enfrentar processos trabalhistas, perdê-los e ter que pagar indenizações por anos. «Azar», lamentam os administradores.

Segundo minha avó, o objetivo inicial desses empreendimentos era financiar despesas. E, de fato, durante muitos anos essa meta foi atingida, razão pela qual as despesas eram baixíssimas. É por isso que havia uma considerável lista de espera para entrar para morar no prédio. Os administradores e os zeladores dizem que a vó exagera.

Hoje, o restaurante é usado como base de operações para os zeladores. E de seus parentes. É bastante natural e compreensível que assim seja. A comida disponível e os horários de atendimento são aleatórios, como em uma casa. Principalmente no inverno, costuma haver roupas penduradas (esclareço que apenas descansando, não para secar) nas cadeiras. Os poucos clientes externos garantem que gostam do «ambiente casual» do local. Esses clientes vão ao local tomar café, ler o jornal e conversar com os zeladores. Raramente almoçam ou jantam. Quando há algum problema no prédio, a melhor estratégia para encontrar os zeladores é procurá-los lá.

O ponto de táxi particular também não se destaca por seus benefícios. Os principais clientes são os zeladores e o pessoal administrativo. Suponho que por camaradagem, são mais tolerantes com as deficiências do serviço. Até onde eu sei, eles pagam como qualquer outro cliente. Outros vizinhos também utilizam o serviço com a ideia de apoiar o condomínio, principalmente quando não temos pressa.

O salão de festas permanece semi-abandonado e, portanto, não pode ser alugado. No máximo, é usado pelas pessoas do edifício. A melhor parte dos móveis e louças desapareceu, então quem quiser usá-lo deve trazer seus próprios utilitários. É uma pena, porque é enorme e a bela arquitetura do edifício também se manifesta no seu interior. Para colocá-lo em funcionamento novamente, seria necessário fazer um grande investimento, o que os administradores consideram inviável.

Outro motivo de lamentação é que, se esses empreendimentos dessem certo, o condomínio poderia ajudar mais vizinhos. Aliás, essa é a tarefa do «zelador das questões sociais». É o mais novo dos zeladores. Trata dasrelações com todos os vizinhos que recebem ajuda do condomínio. Metade dos vizinhos recebe essa ajuda por diferentes motivos. Por exemplo, é recebido por quem tem filhos ou adultos dependentes, as pessoas com deficiência (um dos vizinhos, por exemplo, não tem um dedo mindinho), os que não têm emprego (um dos vizinhos, coitado, está desempregado há vinte anos), os artistas, os estudantes de engenharia, que compram eletrodomésticos ou carros novos, ou os que pagam um empréstimo hipotecário. É evidente que, ao longo dos anos, o condomínio desenvolveu uma sólida cultura de solidariedade entre os moradores do edifício.

Desde que me lembro, as decisões do condomínio são tomadas pelos inquilinos. Minha avó diz que antes, na época dela, as decisões eram tomadas pelos proprietários. Desde que não é mais assim, assegura, que muitos proprietários originais venderam seus apartamentos e outros decidiram parar de alugá-los. Para dar crédito à minha avó, ainda me lembro de muitos desses vizinhos que venderam as suas propriedades quando eu era criança e é verdade que alguns dos apartamentos continuam desabitados.

Para tomar decisões, os administradores convocam as reuniões de condomínio. Geralmente, as reuniões são realizadas por volta do meio-dia e com notificações logo pela manhã. Isso dificulta a participação de quem trabalha fora durante o dia. Diante das reivindicações, os administradores admitem o problema, mas se defendem dizendo que as questões surgem com enorme imprevisto e as resoluções exigem decisões urgentes. Tanto eles quanto os zeladores podem sempre comparecer. É preciso admitir que, apesar das notificações repentinas e da dificuldade de reunir todos os vizinhos, os zeladores vivem incentivando a participação dos vizinhos, em especial daqueles que podem se beneficiar das reuniões. Nesses casos, até se esforçam para mudar os horários.

Ontem, por exemplo, houve uma reunião de condomínio. O tema principal foi a sobrecarga de trabalho que os administradores vinham sofrendo. A questão foi levantada por eles mesmos. Propuseram a contratação de dois novos administradores que pudessem dar-lhes suporte. Insistiram que deveriam ser pessoas confiáveis. Alguns parentes se candidataram. Como de costume, não pude comparecer à reunião. Como descobri mais tarde, estavam os 8 zeladores, os 8 funcionários administrativos e outros 8 vizinhos. A moção foi aprovada por grande maioria, 16 a 8. Desconheço a composição dos votos.

Além dos detalhes da votação, o lado negativo desse resultado é que não haverá outra opção a não ser aumentar novamente as despesas para financiar os salários dos novos administradores. Por sorte, não estarei mais no edifício para pagá-los. O bom é que os novos vizinhos terão um emprego e que as tarefas administrativas devem ser simplificadas.

Da minha família, só eu permaneço morando no prédio. Mamãe e papai morreram há alguns anos. A vó se mudou para uma casa bem em frente ao prédio, pois devido à sua idade não pode subir escadas. Segundo ela, ela tem o consolo de olhar pela janela da casinha e ver seu antigo lar.

Às vezes sinto uma culpa estranha, mas verdadeira, por ter que deixar o edifício. É mais uma intuição do que um pensamento. Revejo minha vida, minhas ações e acho difícil encontrar uma razão para me culpar. Não tenho sido mau, nem preguiçoso, nem por ação nem por omissão. Sou uma pessoa boa, calma e respeitosa. Trabalho, estudo, ajudo minha vó que mora do outro lado da rua. Mas mesmo assim, não consigo me libertar desse sentimento de fracasso pessoal. No fundo, no fundo, sinto que mereço o que está acontecendo comigo, mesmo que não saiba realmente por quê.

Estas são as minhas últimas noites no edifício. Quando vou para a cama, olho para o teto alto e penso no iminente último dia do mês, quando tenho que sair do apartamento. Todas as noites, a imagem é mais ou menos a mesma. Fecho a porta do edifício. Com a chave na mão, percebo que não é mais minha e que não sei bem o que fazer com ela. Atravesso a rua e dou uma última olhada no edifício em ruínas. Como todas as manhãs, o sol o atinge em cheio. Percebo que ainda é desafiador graças à sua arquitetura orgulhosa. Ao contrário das calçadas, paredes e tetos, não é tão fácil destruir a ideia que lhe deu origem. «Adeus, querido edifício», penso. Antes de partir, sinto muitíssima pena. Depois de uma hesitação nostálgica, jogo a chave na sarjeta e vou embora. Ficam para trás o edifício e um longo período da minha vida.

Traduzido por Luca Dutra
dutraluca11[at]gmail.com
Versão original (em espanhol)

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Juan Manuel Guerrera

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